por Neemias Moretti Prudente

Introdução
A Justiça Restaurativa está ganhando destaque na criminologia como uma abordagem alternativa ao sistema punitivo tradicional. Este método concentra-se na reparação do dano, na restauração das relações e na reintegração dos ofensores na comunidade.
Mas como Friedrich Nietzsche, vulgo Mozão, um dos filósofos mais provocativos da história, pode enriquecer nosso entendimento sobre criminologia e Justiça Restaurativa?
Vamos explorar essa conexão.
Nietzsche e a Crítica ao Sistema Jurídico Tradicional
Friedrich Nietzsche criticou vigorosamente o sistema jurídico e moral tradicional, que ele acreditava promover uma moralidade “de escravos”, onde o ressentimento e a vingança prevalecem.
Para Nietzsche, a justiça baseada em punição e retribuição apenas reforça essas tendências destrutivas.
Ele propôs a necessidade de superar esses sentimentos negativos e criar novas formas de justiça que promovam a auto-superação e a verdadeira transformação.
A Justiça Restaurativa como Superação do Ressentimento
Na criminologia, o ressentimento pode ser visto como um dos fatores que perpetuam o ciclo de crime e punição.
Nietzsche acreditava que o ressentimento é um sentimento destrutivo que impede o crescimento pessoal e social.
A Justiça Restaurativa, ao focar na cura e na reconciliação, promove a superação do ressentimento. Em vez de buscar a vingança, as partes envolvidas são incentivadas a compreender o impacto de suas ações e a trabalhar juntas para reparar o dano causado.
Este processo ressoa com a visão nietzschiana de transformação pessoal e fortalecimento através da superação dos sentimentos negativos.
A Vontade de Poder e a Justiça Restaurativa
A vontade de poder, um conceito central na filosofia de Nietzsche, refere-se à força motriz por trás das ações humanas, buscando a auto-afirmação e a superação.
Na criminologia, isso pode ser traduzido para a Justiça Restaurativa como uma maneira de canalizar essa vontade de poder para reconstruir e fortalecer as relações sociais.
Ao invés de perpetuar um ciclo de punição e submissão, a Justiça Restaurativa oferece uma oportunidade para as partes envolvidas exercerem sua vontade de poder de forma construtiva, promovendo a responsabilidade pessoal e o crescimento coletivo.
Perspectivismo e Diálogo Restaurativo
Nietzsche defendia o perspectivismo, a ideia de que não existe uma verdade absoluta, mas múltiplas perspectivas que podem ser igualmente válidas.
A Justiça Restaurativa incorpora esta ideia ao promover o diálogo e a escuta ativa entre as partes. Este processo reconhece a diversidade de experiências e opiniões, buscando uma compreensão mútua e soluções que atendam às necessidades de todos os envolvidos.
Na criminologia, isso significa considerar as perspectivas tanto das vítimas quanto dos ofensores, trabalhando para uma solução que beneficie a comunidade como um todo.
Transformação e Criação de Novos Valores
Para Nietzsche, a verdadeira justiça não se encontra na adesão cega a normas estabelecidas, mas na capacidade de criar novos valores que promovam a vida e a excelência.
A Justiça Restaurativa exemplifica esta transformação ao desafiar as convenções punitivas e introduzir um modelo de justiça que valoriza a cura, a responsabilidade e a comunidade. Este enfoque inovador pode ser visto como um passo em direção à “transvaloração de todos os valores” que Nietzsche defendia.
Na criminologia, isso implica em reavaliar e redesenhar nossas abordagens ao crime e à punição para criar um sistema mais justo e humano.
Caso Concreto: A História de João e Maria
Tício, um jovem de 17 anos, foi pego pichando a parede de uma escola. Mévia, a diretora da escola, estava furiosa e queria que Tício fosse severamente punido para dar o exemplo. No entanto, ao invés de seguir o caminho tradicional de punição, o caso foi encaminhado para um programa de Justiça Restaurativa.
Durante a sessão de mediação, facilitada por Caio, Tício explicou que pichou a escola porque se sentia invisível e queria chamar atenção. Mévia, por sua vez, expressou seu desapontamento e frustração, mas também sua preocupação com a segurança e bem-estar dos alunos.
Com a facilitação de um mediador, Tício e Mévia tiveram a oportunidade de ouvir e entender as perspectivas um do outro. Tício percebeu o impacto negativo de suas ações na comunidade escolar, enquanto Mévia entendeu as motivações e desafios pessoais de Tício. Juntos, eles acordaram que Tício ajudaria a repintar a parede e participaria de um programa de arte na escola, onde poderia expressar sua criatividade de maneira positiva e construtiva.
Aplicando a Filosofia de Nietzsche
- Superação do Ressentimento: Em vez de punir Tício, a Justiça Restaurativa focou na reconciliação e no entendimento mútuo, superando o ressentimento que Mévia inicialmente sentia.
- Vontade de Poder: Tício canalizou sua vontade de poder para uma atividade construtiva, contribuindo positivamente para a comunidade escolar ao invés de causar danos.
- Perspectivismo: A facilitação, por Caio, permitiu que ambos os lados expressassem suas perspectivas, promovendo uma solução que atendesse às necessidades de todos os envolvidos.
- Criação de Novos Valores: O acordo final transformou uma situação negativa em uma oportunidade de crescimento e aprendizado, criando novos valores de responsabilidade e comunidade.
Conclusão
A Justiça Restaurativa oferece uma abordagem inovadora e humanizante para a resolução de conflitos, alinhando-se com muitas das críticas e visões de Friedrich Nietzsche sobre a justiça e a moralidade.
Ao promover a cura, a superação do ressentimento, e a criação de novos valores, este modelo de justiça não apenas atende às necessidades das partes envolvidas, mas também contribui para uma sociedade mais justa e compassiva.
Integrar as ideias de Nietzsche com a prática da Justiça Restaurativa pode enriquecer nosso entendimento e aplicação deste método, promovendo um sistema jurídico mais equitativo e transformador.
Referências
- EZORSKY, Gertrude. Philosophical Perspectives on Punishment. New York: Suny Press. 2016.
- KORITANSKY, Peter Karl. The Philosophy of Punishment and the History of Political Thought. Missouri University Press: Colúmbia, 2011.
- NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Crepúsculo dos ídolos, ou Como se filosofa com o martelo.São Paulo: Companhia de Bolso, 2017.
- __________. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Porto Alegre: L&PM, 2016.
- __________. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Porto Alegre: L&PM, 2016.
- __________. O anticristo: maldição contra o cristianismo. Porto Alegre: L&PM, 2016.
- __________. Genealogia da Moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
- PRUDENTE, Neemias Moretti. Introdução aos Fundamentos da Vitimologia. 2. ed. rev. atual e ampl. Curitiba: CRV, 2020.
- __________. Introdução aos Fundamentos da Justiça Restaurativa. Maringá: Factótum Cultural, 2013.

Neemias Moretti Prudente, Advogado Criminalista. Mestre e Especialista em Ciências Criminais. Bacharel em Direito e Licenciado em Filosofia. Professor e Escritor.