
Estabelecido na legislação brasileira a partir da Lei nº 13.694/2019 (pacote anticrime), o acordo de não persecução penal (ANPP) pode ser entendido como um mecanismo destinado à solução consensual de um caso penal, no qual, cumpridas obrigações pelo investigado estabelecidas em instrumento formal negociado e celebrado com o Ministério Público, tem-se como resultado a extinção da sua punibilidade.
O Estado abdica da persecução penal em relação a um fato tido por criminoso, tendo como contrapartida do investigado, além do reconhecimento do fato (confissão formal e circunstanciada da prática de infração penal), o cumprimento de obrigações, dentre as quais, a de “reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo” (artigo 28-A, I, CPP).
A legislação, contudo, é tímida ao estabelecer critérios para a definição/delimitação do dano a ser reparado, bem como a própria participação da vítima quanto a esse aspecto [1].
Desse cenário de timidez legal, somado a um corrente entendimento de que, na esfera do ANPP, seria desnecessária a reparação integral do dano à vítima, avultam distorções práticas.
Ao deixar-se a negociação da reparação do dano ao alvedrio exclusivo do MP e do investigado, aflora-se o risco de a pactuação ser fixada contemplando valor muito aquém daquilo que seria o devido pela reparação ou mesmo casos em que sequer é estabelecida alguma quantia a esse título, risco esse potencializado pela, a nosso ver, equivocada interpretação do caput do artigo 28-A, quando estabelece que as condições do ANPP seriam “ajustadas cumulativa e alternativamente”, ou ainda pela ressalva do inciso ‘I’ (impossibilidade de fazê-lo) [2].
É que, nos crimes que resultam em danos (materiais e/ou morais) a vítimas, apenas faria sentido que o Estado pudesse abdicar da persecução penal, se, de alguma forma, os danos advindos dessa ação delituosa viessem a ser integralmente reparados.
Ora, se o acordo, ao final, acaba por beneficiar o investigado (v.g., garantindo-lhe a extinção da punibilidade penal), sua legitimação apenas estaria resguardada se a pessoa lesada tivesse a garantia da reparação do dano que lhe fora causado pela ação delituosa. A propósito, parece-nos que ninguém discordaria em assumir que o investigado não pode se beneficiar da própria torpeza, isto é, de que possa ele tirar proveito de um prejuízo que ele próprio causou [3].
Reparação do dano à vítima
Embora o ordenamento estabeleça o necessário controle judicial sobre as condições do ANPP (artigo 5º, XXXV, da CF/88 e artigo 28-A, §5º, do CPP [4]), o qual, na linha da jurisprudência [5], legitimaria a não homologação do acordo quando este não contemple suficientemente a reparação do dano à vítima, isso, por si só, não nos parece resolver e/ou amenizar o problema.
Esse diagnóstico parece ter sido assimilado pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), ao promover, dentre outras, alterações na Resolução nº 181/2017, por meio da Resolução nº 289/2024, a respeito do ANPP [6], em especial, ao regular a participação da vítima no procedimento tendente à celebração do referido instrumento processual. Observe-se, no ponto, o voto do relator das alterações, conselheiro Jaime de Cassio Miranda [7]:
“De nada adianta a celebração de acordos de não persecução penal aos montes, repetindo-se a experiência frustrante da transação penal prevista na Lei nº. 9.099/95 para tão somente cumprir metas, afastando-se do legítimo desiderato – que também deve ser perseguido no direito penal negociado – que é satisfazer os interesses do réu, da vítima e do próprio Estado.
Abreviar o procedimento sem se aprofundar com as consequências daí advindas não é o melhor caminho e a principal prejudicada é a vítima.
Um dos objetivos centrais do ANPP é garantir a satisfação do atingido pelo delito. Por mais que não haja uma participação direta da vítima na finalização da avença, é de relevo que o membro do Ministério Público dê a ela a devida voz. É claro que a palavra da vítima é relevante, a despeito de não vincular o membro do Parquet. Sob esse enfoque, poderá prestar informações valiosas para que seja proporcionada a ela uma verdadeira reparação.”
As alterações promovidas pelo CNMP estabelecem instrumentos concretos conducentes a que as pessoas lesadas pela infração penal possam, ao menos, minimizar os impactos dela decorrentes. Vejamos alguns aspectos que foram regulados:
1º) Direito de participação da vítima: a nova redação do artigo 18-A, §4º, da Resolução 181/2017 do CNPM prevê que o “membro do Ministério Público deverá diligenciar para que a vítima ou, na ausência desta, seus respectivos familiares participem do acordo de não persecução penal com vistas à reparação dos danos causados pela infração”;
2º) Direito de figurar como interveniente do ANPP: a participação da vítima também foi disciplinada nos incisos do referido §4º, viabilizando inclusive que atue, acompanhada por seu defensor, na condição de “interveniente no ANPP, no que diz respeito à reparação dos danos civis decorrentes da infração penal” (artigo 18-A, §4º, II);
3º) Direito de apresentar informações e documentos: para abalizar a proposta de ANPP, a vítima poderá auxiliar diretamente, ou em complemento aos dados juntados pelo próprio MP ou pela autoridade policial, tanto na quantificação do dano, como na demonstração da capacidade econômica do investigado, mediante a apresentação de documentos ou informações (artigo 18-A, §4º, I e IV) [8];
4º) Caráter de irrevogabilidade da cláusula de reparação do dano: a cláusula destinada à reparação do dano poderá ser pactuada em caráter de “irrevogabilidade”, de modo que, mesmo no caso de descumprimento e rescisão do ANPP (v.g., em caso de não cumprimento de suas condições, dentre elas, a própria reparação do dano), a previsão constituirá “título executivo de natureza cível apto à execução” (artigo 18-A, §4º, V) [9];
5º) Direito à reserva de um valor “mínimo do dano”: o não comparecimento da vítima e/ou sua discordância com a cláusula referente ao montante da composição civil não obstam a celebração do ANPP.
Contudo, nestes casos, o montante reservado à reparação do dano no acordo deverá ser “expressamente” ressalvado como “valor mínimo”, o que não impede que a vítima busque a reparação integral do dano pela via própria, notadamente o processo de conhecimento no âmbito cível (artigo 18-A, §4º, III e IV) [10];
Destaque-se a ressalva (a possibilidade de composição civil alusiva a parcela do dano, quando discordar a vítima do valor estipulado), a nosso ver, somente seria possível de ser aplicada quando inviável a comprovação, de plano, do valor do dano, notadamente quando o caso merecer uma análise mais acurada, com o emprego de meios de prova inviáveis neste procedimento (v.g., prova testemunhal, pericial etc.).
Em linhas gerais, as alterações promovidas pelo CNMP parecem vir ao encontro de garantir minimamente que as vítimas tenham instrumentos de satisfação de seus interesses, de forma célere, sem que sejam obrigadas a buscar a — muitas vezes — morosa reparação pela via de processo de conhecimento cível, especialmente após terem vivenciado os efeitos traumáticos da ação delituosa. A ver se isso, na prática, será refletido.
[1] Adicione-se a isso o fato de que, pela lei processual penal (art. 268, CPP), a figura do assistente de acusação apenas teria legitimação para intervir quando instaurado o processo, não antes, o que, pela própria natureza pré-processual do ANPP, em tese, inviabilizaria a intervenção do ofendido no momento em que o dano que lhe fora causado estaria sendo equacionado nesse âmbito.
[2] Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente: I – reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo;
[3] Ao que nos parece, a única maneira de afastar e/ou mitigar a necessidade de reparação integral do dano resultante da ação delituosa, no âmbito de um ANPP, seria a “impossibilidade de fazê-lo”, ressalva essa expressa no final do inciso I do art. 28-A do CPP. Como já decidiu o Superior Tribunal de Justiça, aqui, não basta a mera alegação, pelo investigado, de incapacidade, mas dependeria de demonstração, “(…) com base em documentos, ‘tais como, extratos de conta corrente, conta de luz, imposto de renda ou outros documentos’, sem prejuízo de pesquisas, por parte do membro do MP, aos sistemas de informação disponíveis” (STJ, RHC nº 173.595/CE, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 1º/02/2024).
[4] Art. 28-A (…) § 5º Se o juiz considerar inadequadas, insuficientes ou abusivas as condições dispostas no acordo de não persecução penal, devolverá os autos ao Ministério Público para que seja reformulada a proposta de acordo, com concordância do investigado e seu defensor.
[5] No ponto, conforme orientação do Eg. STJ: “(…) 1. Nos termos do art. 28-A, § 5º, do CPP, o juiz pode deixar de homologar o ANPP quando o acordo não contemplar condições obrigatórias (como, no caso dos autos, a reparação à vítima, exigida pelo art. 28-A, I, do CPP). Precedente desta Quinta Turma. 2. Agravo regimental desprovido”. (STJ, AgRg no AREsp n. 2.183.226/GO, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 7/2/2023, DJe de 13/2/2023).
[6] A Resolução nº 289/2024 teve por objetivo adequar a Resolução nº 181/2017 (que dispõe sobre o regramento dos procedimentos de investigação criminal a cargo do Ministério Público) às alterações legislativas promovidas pela Lei nº 13.694/2019 (“Pacote Anticrime”).
[7] https://www.cnmp.mp.br/portal/images/2023/mar%C3%A7o/PROP_1010_2021_77_rev_final_versao_20_2_2024_CJCM.pdf
[8] Art. 18-A, §4º: “I – antes da apresentação da proposta ao investigado, o Ministério Público providenciará a notificação da vítima para informar sobre os danos decorrentes da infração penal e apresentar, sempre que possível, documentos ou informações que permitam estimar o dano suportado e a capacidade econômica do investigado; (…) VI – para o cumprimento das providências indicadas nos incisos anteriores o órgão de execução ministerial poderá requisitar à Autoridade Policial responsável pela investigação que traga aos autos, documentalmente, elementos de convicção que permitam estimar o dano suportado pela vítima e a capacidade econômica do investigado, sem prejuízo de a própria vítima complementar ou modificar tal documentação antes da celebração do acordo com o investigado.”
[9] Art. 18-A, §4º: (…) “V – a cláusula relativa à composição de danos civis poderá ser pactuada com caráter de irrevogabilidade, constituindo título executivo de natureza cível apto à execução, mesmo na hipótese de posterior rescisão do ANPP;”
[10] Art. 18-A, §4º: (…) “III – o não comparecimento da vítima ou a sua discordância em relação à composição civil dos danos, por si só, não obstará a celebração do ANPP; IV – na hipótese de não comparecimento da vítima ou da sua discordância em relação à composição civil dos danos, o montante a ser pactuado pelo Ministério Público nos termos do art. 28-A, I, do CPP, deverá ser expressamente ressalvado como valor mínimo, não impedindo a busca da reparação integral pelo ofendido por meio das vias próprias;”
- Débora Poetaé advogada, sócia fundadora do escritório Feldens Advogados. Mestre em Direito. Professora de Direito Processual Penal e coordenadora da pós-graduação em Direito Penal e Processo Penal na Unisinos (Universidade do Vale do Rio dos Sinos).
- Mario Azambujaé advogado, sócio do Feldens Advogados. Mestre em Ciências Criminais (PUC-RS). Professor convidado no curso de pós-graduação em Direito Penal e Processo Penal na Unisinos.