
O Superior Tribunal de Justiça publicou, recentemente, o acórdão do AREsp nº 2.123.334/MG, em que fixou teses sobre a admissibilidade e o valor probatório da confissão:
11. Teses fixadas:
11.1: A confissão extrajudicial somente será admissível no processo judicial se feita formalmente e de maneira documentada, dentro de um estabelecimento estatal público e oficial. Tais garantias não podem ser renunciadas pelo interrogado e, se alguma delas não for cumprida, a prova será inadmissível. A inadmissibilidade permanece mesmo que a acusação tente introduzir a confissão extrajudicial no processo por outros meios de prova (como, por exemplo, o testemunho do policial que a colheu).
11.2: A confissão extrajudicial admissível pode servir apenas como meio de obtenção de provas, indicando à polícia ou ao Ministério Público possíveis fontes de provas na investigação, mas não pode embasar a sentença condenatória.
11.3: A confissão judicial, em princípio, é, obviamente, lícita. Todavia, para a condenação, apenas será considerada a confissão que encontre algum sustento nas demais provas, tudo à luz do art. 197 do CPP.
O voto condutor, proferido pelo ministro Ribeiro Dantas, aborda os riscos da confissão extrajudicial e da sua utilização como prova, apresentando propostas para mitigá-los.
O ministro inicia o voto traçando um paralelo com o caso dos irmãos Naves, um erro judiciário histórico no Brasil, no qual a confissão obtida sob tortura levou à condenação injusta dos acusados. O caso serve como ponto de partida para a discussão sobre a pretensa fragilidade da confissão como prova.
Problemas da confissão extrajudicial e a tortura no Brasil
O voto destaca a persistência da tortura e da violência policial no Brasil, mesmo após a redemocratização. O ministro cita estudos e dados com os quais sustenta que a tortura remanesce enquanto prática de investigação policial e destaca a falta de investigação adequada de denúncias por parte das autoridades, especialmente o Ministério Público, e critica uma certa condescendência do Poder Judiciário. Aponta a fragilidade das audiências de custódia como mecanismo de controle e a falta de independência dos órgãos encarregados de investigar a tortura.
Falsas confissões e a (in)admissibilidade da confissão extrajudicial
Tendo esse cenário como pano de fundo, o ministro Ribeiro Dantas questiona a confiabilidade da confissão extrajudicial, mas vai além: “mesmo nos casos em que uma confissão seja conseguida pelas autoridades persecutórias sem nenhuma espécie de coerção, os mais modernos estudos da psicologia forense e dados empíricos extremamente sólidos têm mostrado a pobreza da confissão enquanto meio de prova”.
Para mitigar os riscos de falsas confissões e condenações injustas, o ministro propõe requisitos para a admissibilidade da confissão extrajudicial, como a formalidade do ato e sua realização em estabelecimento estatal oficial.
Valoração da confissão
O voto também discute a valoração da confissão, tanto judicial quanto extrajudicial.
Sobre a confissão extrajudicial, conclui que não detém valor probatório e que deve servir somente para estabelecer uma linha de investigação, permitindo medidas intrusivas: “no campo da valoração probatória, a confissão extrajudicial não tem nenhum lugar numa sentença condenatória, para a qual interessa a confissão colhida em juízo no momento do interrogatório do réu”.
Já no que diz respeito à confissão judicial, assevera que não pode ser considerada prova absoluta e que deve ser analisada em conjunto com outras provas. O ministro ainda propõe a aplicação de critérios como a corroboração e a completude para avaliar a força probatória da confissão.
O voto que conduziu o julgamento, é preciso admitir, apresenta méritos e representa um marco importante na jurisprudência brasileira ao aproximar-se de uma concepção racionalista da prova, que baseia decisões em critérios objetivos, dissociados do famigerado convencimento do julgador. Também a diferenciação entre os momentos da atividade probatória (formação do conjunto de elementos de julgamento, valoração e tomada de decisão[1]) e a distinção entre controles políticos (prova ilícita) e epistêmicos denotam um rigor metodológico que não se viu em outros julgamentos do tribunal. No entanto, apesar desses avanços, uma análise crítica do voto revela fragilidades que merecem ser discutidas.
Por que pessoas inocentes confessam?
A afirmação do ministro Ribeiro Dantas, de que “pessoas inocentes confessam crimes que não cometeram”, mesmo sem coerção, carece de nuances e generaliza um fenômeno complexo. Embora existam casos documentados de falsas confissões, atribuir essa ocorrência a uma suposta “pobreza da confissão enquanto meio de prova” é uma simplificação excessiva.
A literatura especializada aponta que as falsas confissões são, em regra, resultado de fatores específicos e contextuais, como [2]:
- (i) vulnerabilidade do suspeito: indivíduos com doenças mentais, deficiência intelectual, jovens ou sob forte pressão emocional são mais suscetíveis a confessar falsamente; e
- (ii) técnicas de interrogatório: métodos coercitivos, manipulação psicológica, promessas de benefícios ou ameaças.
Ao atribuir um baixo valor epistêmico e nenhum valor probatório a todas confissões extrajudiciais, o tribunal negligencia a importância da análise individual de cada caso, tratando de maneira idêntica situações muito distintas, como:
- (i) confissões tomadas mediante tortura física ou psicológica e sem nenhum grau de corroboração e
- (ii) confissões altamente corroboradas e obtidas em um ambiente que respeita os direitos do acusados.
A ocorrência de falsas confissões não invalida a confissão extrajudicial como meio de prova (como quer o STJ nas teses 1 e 2), mas exige uma análise criteriosa e contextualizada de cada caso. A avaliação do valor probatório da confissão deve considerar todos os elementos do processo, especialmente as circunstâncias do interrogatório e a existência de corroboração.
Como mitigar os riscos de condenações baseadas em falsas confissões?
Reduzindo a zero o valor probatório de toda confissão extrajudicial, o tribunal certamente mitiga o risco de admitir como verdadeiras confissões falsas. No entanto, com a mesma plausibilidade, poderíamos argumentar que, ao reduzir a zero o valor probatório de todo testemunho, estaríamos diminuindo o risco de condenações de inocentes baseadas em falsos testemunhos.
Ao aplicar a mesma lógica que o tribunal confere às confissões ao testemunho, chamamos a atenção para a necessidade de equilíbrio; não se pode simplesmente anular o valor probatório de toda prova confessional sem comprometer a capacidade do sistema de justiça de funcionar corretamente.
Se é bem verdade que uma parte das confissões extrajudiciais podem ser falsas, a grande maioria delas, provavelmente, é verdadeira. Assim, ao negar valor probatório de toda confissão extrajudicial, o tribunal está reduzindo a probabilidade de acertamento dos fatos e não aumentando.
Um sistema penal pensado para proteger direitos do acusado, mas também para proteger valores caros à sociedade, deve ter por objetivo diminuir os erros do processo, sejam eles falsos positivos ou falsos negativos.
Desse modo, uma maneira criteriosa de proteger o sistema contra falsas confissões deve ser escrutinar o trabalho realizado nos interrogatórios, adotando como prática a sua gravação audiovisual, desde o primeiro minuto. Isso garantiria um registro preciso e verificável das circunstâncias em que a confissão foi obtida [3].
Conclusão
Mitigar os riscos de condenações baseadas em falsas confissões exige o fortalecimento dos mecanismos de controle da atividade policial e o respeito aos direitos fundamentais do acusado durante o interrogatório. Nesse sentido, a adoção de práticas como a gravação audiovisual integral dos interrogatórios é medida essencial para avaliar a fiabilidade da confissão.
Se por um lado a confissão não pode ser considerada a “rainha das provas”, também não deve ser descartada, pois é um elemento de prova relevante no processo penal.
[1] FERRER-BELTRÁN, Jordi. Valoração Racional da Prova. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: JusPodivm, 2023. p. 61-67.
[2] Kassin, S. M., Drizin, S. A., Grisso, T., Gudjonsson, G. H., Leo, R. A., & Redlich, A. D. (2010). Police-Induced Confessions: Risk Factors and Recommendations. Law and Human Behavior, 34(1), 3–38. https://doi.org/10.1007/s10979-009-9188-6
[3] Essa é também a principal proposta apresentada por Saul Kassin em: Kassin, S. M., Drizin, S. A., Grisso, T., Gudjonsson, G. H., Leo, R. A., & Redlich, A. D. (2010). Police-Induced Confessions: Risk Factors and Recommendations. Law and Human Behavior, 34(1), 3–38. https://doi.org/10.1007/s10979-009-9188-6
- Gustavo Eloi Razera é promotor de justiça do Ministério Público do Paraná, atua na Comarca de Capanema, graduado em Direito pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (2009), especialista em Compliance Público-Privado, Integridade Corporativa e Repressão à Corrupção pelo Complexo Educacional Renato Saraiva (2020) e mestre em Processo Penal e Garantismo pela Universidade de Girona/Espanha e pela Universidade de Gênova/Itália (2024).
- Juliano Fontanella da Silva é advogado, graduado em Direito pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (2017), especialista em Direito Constitucional pela Faculdade IBMEC São Paulo (2019), especialista em Direito do Trabalho e em Direito Previdenciário pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (2020), especialista em Direito e Processo Penal pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (2021) e mestre em Processo Penal e Garantismo pela Universidade de Girona/Espanha e pela Universidade de Gênova/Itália (2024).