por Neemias Moretti Prudente

A criminologia tem tradicionalmente se preocupado com a figura do criminoso adulto, analisando aspectos como personalidade, comportamento, contexto social e políticas criminais. Entretanto, pouco se discute sobre uma fase crucial no desenvolvimento humano e social que influencia decisivamente a trajetória de indivíduos perante o sistema penal: a infância. É neste contexto que surge o campo denominado Criminologia da Infância, uma área interdisciplinar dedicada a entender as dinâmicas que conectam crianças, crimes, vítimas, autores e instituições sociais.
A Infância e suas Múltiplas Realidades
O conceito socialmente aceito da infância como uma etapa universal, inocente e protegida, não se sustenta quando confrontado com a realidade. Ao contrário do que sugere essa idealização, existem múltiplas infâncias, condicionadas por fatores econômicos, sociais e culturais.
Enquanto algumas crianças crescem em ambientes seguros, acolhedores e estruturados, outras estão submetidas diariamente a condições de violência, abandono, abuso e negligência, muitas vezes praticadas pelos próprios familiares ou pessoas próximas. A criminologia da infância emerge precisamente desse contraste: compreender que as crianças não experimentam a infância da mesma forma e que, portanto, não podem ser analisadas de maneira homogênea.
A Criança como Vítima: Um Panorama Invisível
A vitimologia aplicada à infância revela uma realidade dramática. Dados do UNICEF e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostram que crianças são cotidianamente vítimas de violência física, psicológica e sexual, frequentemente em ambiente doméstico ou institucional. Contudo, a violência contra crianças muitas vezes permanece invisível devido à dificuldade de reconhecimento, denúncia e responsabilização dos agressores.
A criminologia da infância denuncia que o sistema penal, muitas vezes despreparado para lidar com essa vulnerabilidade, acaba por reforçar a invisibilidade dessas vítimas. A ausência de uma escuta especializada eficaz, a revitimização provocada por depoimentos repetitivos e uma abordagem adultocêntrica contribuem para essa situação de desproteção institucionalizada.
Criança Autora de Ato Infracional: Criminalização Antecipada e Seletividade
Outro aspecto relevante da criminologia da infância é a análise da criminalização precoce, especialmente de crianças e adolescentes pertencentes às camadas mais vulneráveis da sociedade. O jovem pobre, periférico e, em sua maioria, negro, frequentemente não é visto como um sujeito que merece proteção, mas como uma ameaça potencial que deve ser contida.
Essa visão se traduz na aplicação distorcida das medidas socioeducativas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Na prática, a internação que deveria ser exceção, muitas vezes, é tratada como regra, reproduzindo a lógica punitiva do sistema penal adulto, contribuindo para a formação de carreiras criminais mais tarde confirmadas pelo sistema carcerário.
A Infância Invisível: Crianças em Situação de Vulnerabilidade Extrema
A criminologia da infância também direciona atenção especial para crianças socialmente invisíveis: aquelas em situação de rua, vítimas indiretas do feminicídio ou filhas de pessoas encarceradas. Esses grupos sofrem um duplo estigma: o primeiro por sua situação social vulnerável, e o segundo pela invisibilidade dentro das próprias políticas públicas e sociais.
Essas crianças dificilmente recebem uma atenção específica dos órgãos de proteção, já saturados ou inadequados para lidar com situações tão complexas. A consequência dessa invisibilidade é o aprofundamento das desigualdades e violências estruturais que podem levá-las, futuramente, ao contato direto ou indireto com o sistema penal.
Criminologia da Infância e Políticas Públicas
Reconhecer a importância da criminologia da infância significa também exigir do Estado um olhar mais qualificado para essa questão. É necessário ultrapassar a visão simplista de que a infância é um problema apenas familiar ou individual, reconhecendo-a como uma questão social ampla e complexa.
Políticas públicas integradas de educação, saúde, assistência social e segurança são essenciais para garantir direitos básicos, prevenção efetiva e proteção adequada às crianças e adolescentes. O que hoje é visto como mera assistência, precisa ser reconhecido como obrigação ética, social e jurídica do Estado.
Conclusão: Por uma Criminologia Atenta à Infância
A criminologia da infância oferece uma visão crítica e aprofundada sobre como as trajetórias de vida são construídas desde os primeiros anos, condicionando o indivíduo ao contato com o sistema penal. Este campo de estudo desafia os operadores do Direito e da criminologia a entenderem a raiz das desigualdades e violências, permitindo uma atuação mais ética, crítica e humanizada.
A advocacia criminal, portanto, ganha uma responsabilidade adicional: olhar com sensibilidade para esses contextos e atuar de maneira mais consciente e transformadora, contribuindo para romper ciclos de violência e criminalização que começam ainda na infância.
📚 Quer saber mais sobre criminologia com uma abordagem crítica, leve e bem-humorada?
Conheça o livro “Criminologia com Humor: Um Guia para Estudantes e Curiosos“, que traz reflexões profundas sobre o fenômeno criminal, apresentadas de maneira acessível, divertida e inteligente. Uma leitura recomendada para advogados, estudantes, pesquisadores e qualquer pessoa interessada em entender melhor o funcionamento da sociedade e do sistema penal.

👉 [Clique aqui para adquirir o livro]

Neemias Moretti Prudente, Advogado Criminalista. Mestre e Especialista em Ciências Criminais. Bacharel em Direito e Licenciado em Filosofia. Escritor, Criminólogo, Terapeuta e Professor. Bibliófilo e Cinéfilo.