Deepfakes Sexuais e Inteligência Artificial: a Urgente Necessidade de Tipificação Penal no Brasil

A tecnologia avança em ritmo vertiginoso, alterando não apenas a forma como interagimos com o mundo, mas também os tipos de violência que podem ser praticadas no espaço digital. Um dos exemplos mais alarmantes dessa nova era é a utilização da inteligência artificial para a criação de vídeos falsos com conteúdo sexual — os chamados deepfakes sexuais. Trata-se de uma manipulação sofisticada que utiliza IA para sobrepor o rosto de uma pessoa ao corpo de outra em cenas pornográficas, sem qualquer consentimento da vítima. Essa prática, embora ainda recente, já se mostra devastadora em seus efeitos emocionais, sociais e morais.

Recentemente, a Espanha deu um passo importante e simbólico ao anunciar um projeto de lei que criminaliza a produção e a divulgação de deepfakes sexuais, classificando-os como “crimes contra a integridade moral”. O texto, pioneiro na Europa, reconhece que tais conteúdos, embora virtuais, produzem danos reais e profundos, violando a dignidade da pessoa humana. Mais do que isso, o projeto visa proteger especialmente crianças e adolescentes, cuja vulnerabilidade digital é crescente e alarmante.

O Reino Unido anunciou, em janeiro de 2025, planos para criminalizar a criação e distribuição de “deepfakes” de caráter sexual, visando combater o aumento desse tipo de abuso que afeta principalmente mulheres e meninas. A nova legislação proposta penalizará qualquer pessoa responsável por criar ou compartilhar deepfakes sem consentimento, buscando fornecer maior proteção e recursos legais para as vítimas. Detalhes adicionais serão incorporados ao Projeto de Lei de Crime e Policiamento. Além disso, estão sendo consideradas penalidades mais severas para plataformas tecnológicas que hospedam essas imagens e para a captura ou instalação ilegal de equipamentos destinados à produção de imagens íntimas não autorizadas

Em fevereiro de 2025, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 3821/2024, que tipifica como crime a manipulação, produção ou divulgação de conteúdo de nudez ou ato sexual falso gerado por inteligência artificial, com pena de reclusão de 2 a 6 anos e multa, prevendo agravantes quando a vítima for mulher, criança, idoso, pessoa com deficiência ou houver ampla disseminação. Embora represente um avanço no enfrentamento dos chamados “deepnudes”, o projeto ainda não abrange de forma completa todas as formas de deepfakes sexuais, sendo necessário um aprimoramento legislativo mais amplo e específico para garantir a plena proteção da dignidade sexual no ambiente digital.

Enquanto isso, no Brasil, seguimos sem previsão legal específica para punir esse tipo de conduta, o que representa um grave déficit de proteção jurídica. A legislação penal brasileira permanece presa a paradigmas clássicos de ofensa sexual, ainda muito vinculados ao contato físico direto ou à violação corporal concreta. Isso nos impede de enxergar a complexidade dos crimes sexuais modernos, praticados através de bits e algoritmos, mas com o mesmo poder destrutivo de um abuso físico.

Por que incluir nos crimes contra a dignidade sexual

A Constituição Federal consagra a dignidade da pessoa humana como fundamento da República (art. 1º, III), e não há dúvidas de que a manipulação sexual da imagem alheia sem consentimento representa uma agressão direta a esse valor. Quando o corpo e o rosto de alguém são inseridos artificialmente em uma cena sexual, ainda que fictícia, ocorre uma forma de estupro simbólico, uma violação da identidade, da sexualidade e da privacidade da vítima.

Apesar disso, a tipificação de tais condutas no Brasil ainda depende de interpretações analógicas ou do uso de tipos penais genéricos, como:

  • Art. 218-C do CP (registro não autorizado de intimidade sexual)
  • Art. 138 a 140 (crimes contra a honra)
  • Lei Carolina Dieckmann (Lei 12.737/12, sobre invasão de dispositivos)
  • Lei 13.718/18 (divulgação de cenas de estupro e pornografia de vingança – Revenge porn)

Nenhum desses dispositivos, no entanto, alcança com precisão a essência do deepfake sexual: a manipulação deliberada e autônoma da imagem para criar uma realidade fictícia pornográfica, sem que a vítima sequer tenha participado da cena.

É por isso que defendemos, com base no princípio da legalidade e na proteção da dignidade sexual, a urgente necessidade de inclusão de um tipo penal específico no Título VI do Código Penal (Dos Crimes Contra a Dignidade Sexual). O novo tipo penal poderia ter a seguinte redação hipotética:

Art. XXX – Produzir, manipular, divulgar ou compartilhar, sem consentimento da vítima, conteúdo audiovisual de natureza sexual no qual seu rosto ou corpo seja inserido por meio de tecnologia ou inteligência artificial.
Pena: reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.
Parágrafo único: A pena é aumentada de metade se o crime for praticado contra criança ou adolescente, ou com fins de vingança, humilhação pública ou extorsão.

Além disso, seria coerente prever a possibilidade de medidas cautelares específicas para remoção imediata do conteúdo, bloqueio de contas e responsabilização civil objetiva das plataformas que se omitem diante de denúncias fundamentadas.

A fronteira entre o virtual e o real já não existe

A violência sexual por meio digital já é uma realidade. O dano é real, ainda que o vídeo seja falso. A dor é autêntica, mesmo que a cena nunca tenha ocorrido. O impacto social, reputacional e psicológico de um deepfake sexual é comparável, muitas vezes, à revitimização típica de casos de abuso sexual físico — com a diferença de que, na internet, a cena pode se perpetuar indefinidamente, sendo compartilhada, comentada e armazenada em múltiplos canais, como uma cicatriz virtual eterna.

Negar a necessidade de uma resposta penal moderna é fechar os olhos para um fenômeno que já afeta milhares de pessoas em silêncio, seja por vergonha, medo, descrença ou revitimização institucional. As vítimas, muitas vezes, não sabem nem como denunciar, tampouco encontram respaldo no sistema jurídico atual.

Conclusão: uma urgência ética e legislativa

O Brasil precisa romper com o atraso legislativo e compreender que a dignidade sexual também se protege no ambiente digital. Não podemos permitir que a inteligência artificial — um instrumento que poderia servir à educação, à saúde e à justiça — seja usada como ferramenta de opressão e violência.

Inspirar-se no projeto espanhol é mais do que uma oportunidade jurídica: é uma necessidade ética, que clama por coerência com os princípios constitucionais de proteção à pessoa humana. A ausência de previsão legal específica para os deepfakes sexuais nos torna coniventes com uma nova forma de abuso. E, como bem ensina a história do Direito Penal, o silêncio da lei, muitas vezes, grita mais alto do que sua letra.


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Neemias Moretti PrudenteAdvogado Criminalista. Mestre e Especialista em Ciências Criminais. Bacharel em Direito e Licenciado em Filosofia. Escritor, Criminólogo, Terapeuta e Professor. Bibliófilo e Cinéfilo.

Publicado por Factótum Cultural

Um amante do conhecimento, explorador inquieto e ousado, que compartilha ideias e expande consciências pelo vasto universo.