
Em 2019, com o advento da Lei no 13.964 (pacote anticrime)1, iniciaram-se os primeiros avanços no processo criminal brasileiro acerca da investigação defensiva, com destaque para a menção expressa da figura do juiz de garantias ou juízo das garantias. Em que pese tais avanços, na prática, a investigação defensiva ainda é uma expectativa de inúmeros defensores brasileiros, uma vez que em 2024 o contexto fático das práticas processuais criminais ainda é insuficiente quanto à concretização das aspirações legais introduzidas desde 2019 e que tendem a implantar maior segurança defensiva para os cidadãos sob o interesse punitivo do Estado.
Se de um lado há o imbróglio quanto à concretização da implantação do juiz de garantias, mesmo sob reconhecimento irredutível do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) com relação à essencialidade dessa materialização fática, de outro, inúmeros discursos passam a questionar a fragilidade da defesa do cidadão na fase investigativa do processo criminal brasileiro. As críticas estabelecidas por inúmeros doutrinadores, como Aury Lopes Jr. e outros profissionais da seara criminal, são fundamentadas por inúmeras ocorrências de violações dos direitos tutelados pelos cidadãos, com destaque para as garantias de ampla defesa, de contraditório e de presunção da inocência.
Nas trincheiras do magistério criminal é comum que advogados defensivos se deparem, na fase pré-processual, com um amplo cerceamento de manifestação defensiva em prol da produção de provas que possam contestar as acusações direcionadas aos seus representados. Nesse aspecto, o cenário torna-se nocivo para a reprodução de violações contra o cidadão e, dentre todas as possibilidades, Alexandre Rosa e Fernanda Rudolfo2 mencionam a “teoria da perda de uma chance probatória” como um grave prejuízo aos cidadãos sob efeitos da tutela punitiva do Estado.
De acordo com os autores aqui mencionados, a incidência da perda de uma chance probatória fere diretamente as garantias constitucionais que visam a assegurar ao cidadão um devido processo legal, de forma legítima.
Nos crimes contra a dignidade sexual, a palavra da vítima recebe elevado teor probatório, revestindo o depoimento pessoal de significância elementar para a condução de um processo criminal. No entanto, é preciso considerar que não se aplica à tal condição o caráter de absolutismo, sob riscos de se promover violações aos direitos constitucionais dos cidadãos com status de investigado ou acusado. Observa-se, porém, que na prática muitos casos evidenciam a produção insuficiente de provas pelo Ministério Público (MP) para oferecer a denúncia contra cidadãos acusados de crimes contra a dignidade sexual.
A fragilidade da produção de provas nos referidos crimes insurge em erro e abre margem para a incidência de riscos que podem levar o cidadão a perder a sua chance probatória, ainda mais num cenário processual no qual, em fase pré-processual (até o oferecimento da denúncia pelo MP), a defesa esteja mais limitada quanto à sua atuação2, o que pode provocar acusações e mesmo condenações injustas, relativizando a rigidez constitucional aplicada ao processo criminal brasileiro. Diante de tal fato que se reveste de elevada preocupação fática, os próximos parágrafos apresentados por este artigo de opinião irão construir um diálogo dedicado a demonstrar como a investigação defensiva pode inibir a incidência da “perda de uma chance probatória” nos casos que envolvem crimes contra a dignidade sexual.
Investigação defensiva
A investigação defensiva já é adotada por alguns sistemas processuais criminais, distintos ou similares ao modelo brasileiro, a exemplo do que ocorre na Alemanha, Estados Unidos e Itália. O que esses sistemas processuais possuem em comum é a permissão legal de maior participação da defesa do cidadão na fase pré-processual, ou seja, admite-se que o defensor tenha conduta ativa na produção de provas que possam contestar preliminarmente as acusações construídas em desfavor de seu representado. Muitos autores defendem que essa prática é elementar ao processo criminal, principalmente em sistemas constitucionalizados, visto os inúmeros riscos que podem afetar direitos e garantias tutelados pelos cidadãos, devendo ser combatidos desde o início3.
Não se traz aqui a pretensão de diálogo que construa uma percepção de inércia na participação da defesa em fase pré-processual no processo criminal brasileiro, pois ainda que limitada a defesa possui essa garantia tutelada por seu magistério advocatício. No entanto, ao se compreender a investigação defensiva como uma prática de conceito mais amplo, que assegura aos defensores equivalência de condições com a acusação, a exemplo de maior liberdade para produzir provas, para requerer em Juízo a produção ou a anulação de atos praticados que apresentem vícios/ilegalidades etc., é pertinente mencionar a necessidade de seu incremento fático no processo criminal brasileiro, principalmente para que se possa inibir a denominada “perda de uma chance probatória” em desfavor dos cidadãos.
Teoria da Perda de uma Chance Probatória
No entendimento doutrinário de Rosa e Rudolfo2, a teoria da perda de uma chance probatória, usualmente reconhecida pelo direito civil como a situação em que uma das partes é prejudicada devido à conduta ilícita praticada pela outra parte, seja por omissão (no caso da não produção de provas necessárias) ou por ação (a exemplo da interpretação seletiva da lei), foi aplicada ao contexto do direito penal brasileiro. Possuindo a mesma razão axiológica, a perda de uma chance probatória no processo penal brasileiro refere-se ao prejuízo que, na maioria das vezes, é atribuído ao cidadão investigado/acusado pela insuficiente produção de provas em favor da verdade real dos fatos.
O próprio Superior Tribunal de Justiça (STJ), adotando o entendimento dos doutrinadores retromencionados, no curso da decisão dedicada ao AREsp 1940381/AL, de 2021, menciona que a teoria da perda de uma chance probatória ocorre:
6. Nas hipóteses em que o Estado se omite e deixa de produzir provas que estavam ao seu alcance, julgando suficientes aqueles elementos que já estão à sua disposição, o acusado perde a chance — com a não produção (desistência, não requerimento, inviabilidade, ausência de produção no momento do fato etc.) —, de que a sua inocência seja afastada (ou não) de boa-fé. Ou seja, sua expectativa foi destruída (p. 462, grifos nossos)4.
Neste exemplo jurisprudencial destacado, o STJ reconheceu a incidência da teoria da perda de uma chance probatória em situação de inércia do Ministério Público para produzir provas necessárias para elucidar os fatos, coletando apenas elementos que foram considerados insuficientes, tendenciosos ao prejuízo do cidadão acusado. Prejuízo esse que, diante de caso criminal que envolva algum tipo de crime contra a dignidade sexual ou outro tipo penal no qual a palavra da vítima possua maior valor probatório, os efeitos nocivos aos direitos e garantias do cidadão podem ser ainda maiores e, num sistema processual criminal onde há disparidade de armas interpartes na fase pré-processual3, os riscos de acusações ou condenações injustas são ainda mais elevados.
Perda da chance probatória em crimes sexuais
O rol dos crimes contra a dignidade sexual, no sistema criminal brasileiro, é apresentado pelo Código Penal de 1940 a partir do seu Título VI, Capítulo I. Dentre eles, tem-se os crimes de estupro (artigo 213), de violação sexual mediante fraude (artigo 215), de importunação sexual (artigo 215-A), de assédio sexual (artigo 216-A), de exposição de registro não autorizado da intimidade sexual (artigo 216-B), de estupro de vulnerável (artigo 217-A) e alguns outros5. O sistema criminal brasileiro, considerando a nocividade social de tais crimes, elevou o teor da palavra da vítima como meio probatório — situação essa que, em alguns casos, estando-se diante de certa limitação na atuação da defesa do cidadão, aumentam-se os riscos de prejuízos em acusações ou condenações fundamentadas fragilmente.
Nestes casos, a incidência da perda de uma chance probatória possui riscos mais elevados, vez que a acusação pode vir a produzir provas insuficientes, tomando para si certa condição de absolutismo da valoração da palavra das vítimas. Em outra decisão mais recente emitida pelo próprio STJ, no AREsp 2627793/2024, o tribunal valeu-se de menção expressa na teoria da perda de uma chance, considerada pelo AREsp 1940381/AL, para indicar que esse entendimento aplica-se plenamente aos casos que envolvam matéria de crimes contra a dignidade sexual das vítimas, pois de acordo com o relator “não pode a acusação buscar uma aplicação seletiva da Lei, escolhendo somente as partes que lhe interessam e excluindo aquelas que garantem à defesa o direito de participar da formação da prova”, afirmando ainda que “o testemunho indireto não é lícito e nem capaz para, por si só, sustentar a condenação do réu”, resultando assim na sua absolvição6.
Desta forma, além de ficar demonstrada a fragilidade e os riscos inerentes aos casos processuais que envolvem crimes contra a dignidade humana, demonstra-se aqui a inclinação positiva do egrégio tribunal para reconhecer conduta ilícita da acusação na produção ineficiente de provas, beneficiando a parte autora em detrimento do acusado.
Se a perda de provar o contrário da acusação em qualquer caso criminal atribui ao cidadão prejuízo significativo, nos casos que envolvem crimes contra a dignidade sexual os efeitos desse prejuízo tendem a ser ainda maiores, dada a dimensão social da questão envolvida, além da jurídica. Compreende-se assim que, conforme destacado pelo entendimento do STJ no AREsp 1940381/AL de 2021, o Estado retira do cidadão a sua “expectativa” de defesa4. Fato esse que, por si só, é inconstitucional, visto que os liames constitucionais aplicados ao processo penal brasileiro exigem do Estado a proteção de todos os direitos e garantias tutelados por todo e qualquer cidadão que esteja sob seu interesse punitivo, principalmente os direitos de ampla defesa, de apresentar contraditório, de paridade de armas, de presunção de inocência e outros que, quando ceifados ilicitamente, afetam o devido processo legal.
Investigação defensiva e inibição da perda de uma chance
É importante iniciar este tópico enfatizando que a atuação do Estado, enquanto acusação, em toda e qualquer fase de um processo criminal deve limitar-se à legalidade constitucional obrigatória, devendo a acusação agir dentro dos limites aplicados ao seu poder punitivo (jus puniendi). No entanto, a prática da advocacia criminal lida diariamente com situações nas quais esse limite é claramente ultrapassado, violando a devida garantia de legalidade em distintas fases do processo criminal, principalmente na pré-processual. Nesta fase, tanto a investigação realizada pela polícia, quanto pelo Ministério Público, é capaz de apresentar vícios/ilegalidades que podem comprometer seriamente a segurança jurídica do cidadão, implicando numa acusação indevida ou mesmo condicionando um processo criminal a uma sentença injusta.
É justamente nesta fase que a perda de uma chance probatória pode afetar os direitos e garantias do cidadão, uma vez que a produção maculada de provas pela acusação pode conduzir a resultados que — se as provas necessárias para elucidar os fatos, sob reconhecimento do dever de construção da verdade real, fossem devidamente produzidas — poderiam ser contrários. Diga-se que, quando a acusação deixa de produzir provas disponíveis, como ocorreu no caso do AREsp 2627793/2024, o Estado inclina-se para uma conduta de aplicação seletiva da lei, beneficiando assim a manutenção da acusação, sob o intento de produzir sentença desfavorável ao cidadão acusado. Por outra ótica, se esse mesmo Estado adota a conduta legal dele exigida, pela produção de todas as provas disponíveis e necessárias para esclarecer, de fato, o ocorrido, estaria o cidadão sob maior margem de segurança jurídica.
Para sanar os riscos desfavoráveis aos cidadãos, a investigação defensiva vem sendo adotada por países como Alemanha, Estados Unidos e Itália, sendo vista como prática eficiente para inibir prejuízos processuais criminais decorrentes de condutas ilícitas por ação ou omissão do Estado, quanto à sua função de acusação. Sob a mesma finalidade, levanta-se aqui a tese de que a investigação defensiva possa ser, de fato, incrementada no processo penal brasileiro, dada a emergência de se equiparar a atuação entre defesa e acusação na fase pré-processual, ou seja, até o oferecimento da denúncia3. É preciso sair do mero plano teórico já apresentado pelo pacote anticrime para buscar implementar concretamente práticas processuais que possam inibir a ocorrência da perda de uma chance probatória e outros danos nocivos ao cidadão que esteja inserido no curso de um processo criminal.
Fica como conclusão crítica a reflexão jurídica sobre a inércia do Estado brasileiro na implantação de garantias já inseridas no ordenamento criminal, como o juiz de garantias e que, no âmbito da investigação defensiva, são vistas como práticas eficientes para sanar problemas que afetam os direitos do cidadão. Assim, de forma ávida, emergente é a necessidade de que os colegas advogados criminalistas se inclinem para o plano político, atuando sob cobranças que venham a obrigar o legislador a reconhecer a necessidade de dispor de instrumentos capazes de revestir o processo criminal brasileiro da devida legalidade, equiparando as armas entre as partes, com destaque para a reparação do direito de a defesa do cidadão atuar licitamente de forma mais ampla na fase investigativa.
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Referências
1 BRASIL. Lei no 13.964 de 24 de dezembro de 2019. Aperfeiçoa a legislação penal e processual penal. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/l13964.htm. Acesso em: 02 mar 2025.
2 ROSA, Alexandre M.; RUDOLFO, Fernanda M. A teoria da perda de uma chance probatória no processo penal. Florianópolis: Emais Editora & Livraria Jurídica, 2024.
3 SILVA, Franklyn R. A. A investigação criminal direta pela defesa. São Paulo: JusPodivm, 2023.
4 STJ – Superior Tribunal de Justiça. AREsp n. 1.940.381/AL, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 14/12/2021, DJ-e de 16/12/2021. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_ registro=202102429156&dt_publicacao=16/12/2021. Acesso em: 02 mar 2025.
5 BRASIL. Decreto-lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em: 02 mar 2025.
6 STJ – Superior Tribunal de Justiça. AgRg no AgRg no AREsp n. 2.627.793/SC, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 6/8/2024, DJe de 13/8/2024. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao ?num_registro=202401592668&dt_publicacao=13/08/2024. Acesso em: 02 mar 2025.
- Warley Freitas de Lima é advogado, professor de Direito na Universidade do Vale do Paraíba, graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade de Taubaté (1997), especialista em Direito do Estado (UGF), mestre em Direito pelo Centro Universitário Salesiano de São Paulo (2018) e doutorando em Direito (Sistema Constitucional de Garantia de Direitos) pela Instituição Toledo de Ensino.
- Marcos Vinícius Rodrigues Cesar Doria é advogado criminalista, ex-juiz de direito do Tribunal de Justiça de São Paulo, graduado em Direito pela Faculdade Salesiana de Direito de Lorena (1990), especialista em Direito Imobiliário (FISP), especialista em Direito Penal e Criminologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e sócio-fundador do Instituto Marcos Dória de Aprimoramento Profissional (IMD).