Por Aury Lopes Jr.

É preciso compreender que por séculos a humanidade coisificou os corpos femininos, domesticou e objetificou a mulher, negando-lhe voz e lugar de fala. A ignorância e o medo pela descoberta do ‘poder do ventre’ é o nascimento deste cruel e desumano processo de coisificação, censura e até demonização [1] dos corpos femininos.
Não se pode esquecer da criação e posterior perseguição da figura da ‘bruxa’ na inquisição e o que isso representa no complexo e profundo processo de violência de gênero. Essa misoginia institucionalizada também se manifestou no direito penal e no processo penal, ainda encontrando seus resquícios até mesmo na legislação contemporânea. Obviamente tudo isso deve ser combatido e repelido com veemência.
Nesta perspectiva situa-se a questão da valoração probatória da palavra da vítima, especialmente em crimes sexuais e de violência doméstica, onde a jurisprudência é automática e acrítica em repetir o mantra de que ‘a palavra da vítima deve ter maior valor e maior prestígio’ nestes tipos de crimes. Será?
O endeusamento da palavra da vítima é um erro tão grande como é a sua demonização. É uma errada simplificação de um complexo contexto. Um depoimento deve ser considerado por sua qualidade, coerência e credibilidade e, em qualquer caso, conforme o contexto probatório. O erro está naquilo que Morais da Rosa chama de armadilha lógica do “a priori”, de um depoimento já ser previamente desacreditado ou tido como verdadeiro e superestimado antes mesmo de ser prestado. Isso é foco de inúmeras e graves injustiças.
Condenações baseadas em depoimentos mentirosos, ou frutos de falsa memória, falso reconhecimento e até erros de boa-fé. É preciso fazer uma recusa aos dois extremos valorativos: não endeusar, mas também não demonizar. É preciso cautela e disposição para duvidar do que está sendo dito, fomentar o desejo de investigar para além do que lhe é dado, evitando o atalho sedutor de acreditar na palavra da vítima sem tensionar com o restante do contexto probatório.
O que se vê agora — na esfera do processo penal e da valoração probatória — é um outro erro, fruto da culpa. Supervalorizar a palavra da vítima nos crimes sexuais não é a forma correta de corrigir os erros do passado (e do presente).
E, mais do que isso: é uma covardia probatória e uma pseudo bondade (quem nos protege da bondade dos bons?).
Revitimização
É uma covardia probatória e uma bondade ilusória, mas que no fundo revela uma imensa maldade e uma nova revitimização. Quando a vítima chega na polícia ela precisa ser respeitada, acolhida e ouvida [2]. Ela precisa de cuidado e atenção. Ela não quer a atribuição da responsabilidade por punir ou não alguém. Isso é dever do Estado. Ela quer que o fato seja apurado (pelo Estado, afinal é dever dele) e punido o culpado. A covardia probatória está na supervalorização da sua palavra, que revela a atribuição (a ela) da responsabilidade punitiva.
Quando o policial (leia-se: o sistema punitivo como um todo) diz para a vítima: “aqui está o suspeito, se você reconhecer nós vamos acreditar, tua palavra terá valor decisivo e ele será punido; mas se você não reconhecer, ele será liberado. Com base no teu reconhecimento e no teu depoimento, ele poderá ser condenado, porque a tua palavra tem maior valor, maior prestígio e valor decisivo.”
Percebem a covardia probatória e a pseudo bondade? A vítima não quer essa responsabilidade e tampouco lhe pode ser, legitimamente, atribuída! Não é a vítima que precisa carregar sozinha a responsabilidade por reconhecer ou não alguém. Por recordar integralmente de todos os detalhes necessários para punir ou não um agressor. Óbvio que não se lhe pode atribuir tamanha responsabilidade! Isso é um processo de revitimização pela terceirização de responsabilidades. Punir é necessário, punir é civilizatório, mas desde que foram abandonados os sistemas de vingança privada e instituída a pena-pública, a responsabilidade é exclusiva do Estado, do início ao fim.
Compete exclusivamente ao Estado a responsabilidade por punir ou não o agressor. Compete ao Estado (polícia-MP) produzir, a partir da versão da vítima (mas não apenas com base nela), os elementos probatórios suficientes e robustos para o justo processo e a devida punição. E compete ao juiz a responsabilidade por valorar o conjunto probatório, como um tudo, sem atalhos cognitivos e simplificações burocráticas (a vítima reconheceu, a vítima narrou o fato de forma coerente, está resolvido o problema..).
Atribuir à palavra da vítima um valor probatório maior, decisivo diante da falta de provas, é um atalho cognitivo errado, típico da incapacidade e incompetência estatal de desempenhar suas verdadeiras responsabilidades. Tampouco se pode aceitar a inversão da carga probatória que tem sido feita, com o acusado tendo que provar que ‘não praticou’ determinado fato, num exercício de contorcionismo, diante de uma prova diabólica e que tampouco lhe compete a carga.
Também é preciso que o julgador tenha consciência dos perigos da dissonância cognitiva [3] e do efeito primazia [4], especialmente do viés confirmatório [5]. É inegável, como aponta Gabriela Bemfica [6], que a simples leitura de uma imputação de crime sexual, notadamente se for de vulnerável, causa repulsa, aversão, fazendo com que, inevitavelmente se construa uma imagem desprezível do acusado, antes da formação da culpa. Nessa lógica, tamanha repugnância das imputações gera uma espécie de presunção imediata de culpa grave, que pode se refletir, inclusive, na tendência do julgador, dada sua condição humana, se afastar da necessária imparcialidade e da preservação das garantias processuais, gerando uma expectativa de que o réu prove o equívoco da hipótese acusatória, numa inaceitável inversão do ônus probatório. O juiz precisa fazer um exercício contraintuitivo para evitar o ‘decidir primeiro e depois buscar os elementos probatórios que justificam a decisão já tomada’.
É imprescindível que se considere, quando da valoração da palavra da vítima, alguns critérios muito bem explicados por Janaína Matida [7]:
a) esteja ausente a incredibilidade subjetiva: ausência de motivos ou razões que possam levar a crer que o depoimento é movido por sentimento de vingança, raiva, frustração, interesses patrimoniais, alienação parental, etc. [8] Não se trata de estereótipos ou preconceitos, mas de verificação de eventual motivação inidônea do depoimento.
b) a declaração seja verossímil: a partir da dinâmica do ato, de coerência com o restante da prova. A antítese seria a declaração fantasiosa, ilógica, desconectada da realidade ou dinâmica do ato narrado. Por vezes a narrativa da vítima não encontra amparo em elementos externos, como horário, local, dinâmica do fato, condições físicas do agressor, etc. No mesmo sentido quando o exame de corpo de delito não ampara a versão da vítima, que narra determinado tipo de violência física, que deixa vestígios, e nada é comprovado. Enfim, é preciso analisar o caso concreto e sua complexa fenomenologia, cotejando as declarações da vítima com a dinâmica lógica e racional.
c) firme ao longo do procedimento: não se trata de exigir uma versão perfeita, acabada e exatamente igual ao longo de todo o procedimento de apuração dos fatos (inquérito e processo), até porque isso seria incompatível com o que se sabe sobre memória, capacidade de verbalizar, limites cognitivos, etc. Mas também não se pode admitir como confiável um depoimento que mude em aspectos importantes, que apresente versões contraditórias, distintas, em relação a pontos cruciais. Versões distintas sobre um mesmo fato geram dúvida fundada sobre o ocorrido e essa dúvida é incompatível com uma valoração capaz de gerar a condenação de um imputado (até porque, em último caso, vale o in dubio pro reo).
d) corroborada mediante dados objetivos: esse é um dos aspectos mais importantes, a existência de elementos externos de corroboração, de natureza objetiva. Não se requer uma testemunha presencial de um estupro, até porque na imensa maioria dos casos é cometido de forma oculta. Mas a investigação pode, perfeitamente, trazer elementos objetivos externos à vítima que corroboram a dinâmica dos fatos. Por exemplo: imagens de circuitos de segurança que comprovam a presença do agressor e vítima naquele dia/local; os dados obtidos através da apreensão de aparelhos de smartfone comprovam a geolocalização de ambos; este mesmo aparelho comprova trajeto percorrido; meios de deslocamento; mensagens e toda uma gama de informação; material genético colhido no local ou no corpo da vítima; impressões digitais; laudo pericial que comprove a violência sexual em consonância com a versão da vítima, etc. Enfim, uma investigação técnica, inteligente e bem feita porque essa é a verdadeira assunção da responsabilidade probatória do Estado, que deve buscar a prova do fato para muito além da palavra da vítima.
Tais critérios, analisados de forma conjunta no caso concreto, podem reduzir os danos de um erro judiciário. Não significam, obviamente, garantia de veracidade, mas são redutores de danos e precisam ser considerados na verificação de uma sentença condenatória. A dúvida sempre beneficia o réu, na perspectiva de manutenção da presunção de inocência, até porque ela não é menor ou maior, mais robusta ou mais frágil, conforme a natureza do crime.
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[1] Para compreender o que estamos explicando é preciso conhecer o começo de tudo, o famoso Malleus Maleficarum – O martelo das feiticeiras – escrito em 1484 pelos inquisidores Heinrich kramer e James Sprenger.
[2] Como explica Gabriela BEMFICA (Crimes sexuais: a lacuna probatória e o papel da investigação defensiva. In “STJ em Pauta”. GONÇALVES, Benedito; AKERMAN, William; AKERMAN, Priscila Machado; FERNANDES, Isis Ribeiro Marques (Organizadores). Brasília, Editora Sobredireito, 2025, p.442), “o drama da vítima não se resume à coragem para romper o constrangimento pessoal para fazer a denúncia e enfrentar olhar crítico do sistema lhe jugando como se ela fosse a ré nesse processo, ou melhor: tivesse culpa da violência sofrida. Ao expor seu sofrimento, sua palavra é posta à prova, sendo-lhe exigidas provas que corroborem o seu relato, para atribuir-lhe veracidade. Provas? Como se vai exigir de uma vítima de violência doméstica que leve testemunhas para dentro do seu quarto onde é estuprada por seu marido? Como vai se exigir que se prepare para filmar o exato momento em que é forçada a manter relações sexuais com seu marido? Ou com seu chefe? Ou com um homem com quem consentiu uma relação, mas não consentiu a agressão sexual? O mesmo se diga em relação a uma vítima de um episódio eventual de violência sexual fora do âmbito doméstico: como exigir prova de um ato libidinoso que não deixa vestígio? A vítima passa a ser, então, descredibilizada, humilhada, envergonhada por não ter nada além da sua, “leviana”, mas tão sofrida palavra.”
[3] SCHÜNEMANN, Bernd. “O juiz como um terceiro manipulado no processo penal? Uma confirmação empírica dos efeitos perseverança e aliança”. In: SCHÜNEMANN, Bernd. Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito. Luís Greco (coord.). São Paulo: Marcial Pons, 2013.
[4] Entre outros, no texto “Juiz das garantias: para acabar com o faz-de-conta-que-existe-igualdade-cognitiva…” que publicamos em coautoria com Ruiz RITTER na Coluna Limite Penal, disponível aqui
[5] Sobre o tema, imprescindível a leitura de Alexandre Morais da Rosa e Paola Bianchi Wojciechowski na obra “Viéses da Justiça”, EMais editora.
[6] BEMFICA, Gabriela. Crimes sexuais: a lacuna probatória e o papel da investigação defensiva. In “STJ em Pauta”. GONÇALVES, Benedito; AKERMAN, William; AKERMAN, Priscila Machado; FERNANDES, Isis Ribeiro Marques (Organizadores). Brasília, Editora Sobredireito, 2025, p. 445.
[7] MATIDA, Janaína. “A determinação dos fatos nos crimes de gênero: entre compromissos epistêmicos e o respeito à presunção de inocência”. In: Violência de Gênero: temas polêmicos e atuais. Organizado por Cristiane Brandão Augusto e André Nicolitt. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2019, p. 103 e ss.
[8] Como aponta Gabriela BEMFICA, “ocorre que, por outro lado, bem se sabe que muitas mulheres, cientes da gravidade das medidas impostas pela Lei Maria da Penha, do estigma que isso gera ao acusado, e do poder atribuído à palavra da vítima, passaram a dela se valer para, motivadas por intrigas, vingança, ciúmes e diversas outras razões, destruir a reputação e o futuro de homens. Assim, se por um período, a palavra da vítima de violência sexual ou doméstica ficou invisibilizada, após o advento da Lei Maria da Penha passou a ser supervalorizada, endeusada, passando a referida Lei a ser utilizada, também, como instrumento de vingança.” BEMFICA, Gabriela. Crimes sexuais: a lacuna probatória e o papel da investigação defensiva. In “STJ em Pauta”. GONÇALVES, Benedito; AKERMAN, William; AKERMAN, Priscila Machado; FERNANDES, Isis Ribeiro Marques (Organizadores). Brasília, Editora Sobredireito, 2025, p. 444.
é doutor em Direito Processual Penal, professor titular no Programa de Pós-Graduação, Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS, autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação e advogado integrante do Escritório Aury Lopes Jr. Advogados.