por Neemias Moretti Prudente

“Há desejos que devoram — e há corpos que consentem.”
Introdução
Na madrugada do dia 5 de junho de 2024, algo em mim despertou — não foi um pensamento, nem uma teoria jurídica, muito menos uma lembrança. Foi um sonho. Desses que acordam a alma antes mesmo de os olhos abrirem. Um parque deserto. Uma cabeça enterrada. Um corpo encontrado. Dois policiais em um carro estranho, investigando um crime que, ao que tudo indicava, era também um ritual.
As vítimas ofereciam, de forma voluntária, seus órgãos sexuais. Diziam que eram lixo. Um lixo espiritual, impuro. Eram devorados por alguém que chamavam de “canibal da alma”. E quando o suspeito foi interrogado, ele não negava nada. Ao contrário: sorria. Dizia coisas que pareciam saídas de um livro de Kafka ou de um monólogo filosófico de Nietzsche. Algo como: “Somos apenas engrenagens da máquina. Eu, você, todos nós.”
Acordei com aquilo ecoando em mim.
Como posso sonhar com algo que nunca estudei? Como posso escrever histórias tão vivas sem saber de onde vêm?
Na dúvida, escrevo. Pesquiso. Investigo. E é isso que você encontrará a seguir.
O Sonho: Confissões no Parque do Deserto
Era como se eu estivesse dentro de um filme de suspense, mas com elementos surreais. O cenário era seco, árido, um parque abandonado no meio do deserto. Uma cabeça humana fora desenterrada. Dias depois, o corpo foi encontrado. Mutilado. Mas não por violência comum — as vítimas haviam se oferecido. Haviam se preparado espiritualmente para aquilo.
Entendiam que seus órgãos sexuais eram impuros. Que precisavam ser sacrificados. Eram parte de uma crença, de uma seita. E aquele que os devorava — o canibal — não era visto como criminoso. Era um agente de purificação.
Os investigadores pareciam deslocados, como se tivessem saído de um desenho animado antigo, vestidos com uniformes marrons e guiando uma viatura que lembrava vagamente o veículo do Dick Vigarista. Mas o que mais me marcou foi o interrogatório. O acusado estava sereno. Sem ironia, sem sarcasmo. Apenas convicção:
— Por que você me incriminou? Você também estava lá. Há muitos outros iguais a mim. Eu morto, preso, não muda nada. Somos apenas engrenagens da máquina. Você também é. Pergunte-se: o que essa comunidade realmente quer? Justiça ou espetáculo? Atire, se quiser. Já existe outro. E ele sabe exatamente quem você é.
Acordei em silêncio. Aquilo não era um pesadelo. Era uma espécie de revelação. E talvez fosse também um chamado para tratar do tema.
Canibalismo Sexual: Um Conceito que Assusta, Mas Existe
O canibalismo sexual é uma manifestação rara e extrema, onde há excitação associada ao ato de devorar o corpo de outro ser humano — com ou sem o consentimento da vítima. Pode ser simbólico, ritualístico ou motivado por fantasias parafílicas. Não está classificado formalmente como uma parafilia autônoma no DSM-5, mas é estudado dentro de transtornos graves, como sadismo sexual extremo, transtorno de personalidade antissocial, necrofilia e transtornos delirantes com motivação religiosa ou espiritual.
Canibalismo no Mundo Animal
Na natureza, canibalismo é comum — mas com finalidades específicas.
- Louva-a-deus e aranhas viúvas-negras devoram o parceiro após o acasalamento.
- Roedores devoram filhotes doentes ou em ambientes hostis.
- Peixes e répteis consomem os mais fracos da ninhada.
- Entre leões, o novo macho dominante costuma matar os filhotes do antigo líder para que as fêmeas entrem no cio — um ato brutal de domínio sexual e controle reprodutivo.
Mas entre humanos, o canibalismo — especialmente sexual — não é instintivo. É simbólico. Ritualístico. Psíquico. E, por isso, tão mais perturbador.
Canibalismo Ritual: A Tradição dos Wari’ e o Simbolismo da Devoção
Entre os Wari’, povo indígena de Rondônia, o canibalismo ritual era uma forma de luto. Comer o corpo de um ente querido não era ato de barbárie, mas de afeto profundo — uma maneira de libertar o espírito do falecido e impedir que ele se tornasse presa da podridão. Nessa lógica, devorar era amar. O corpo se tornava parte dos vivos. Talvez o canibalismo sexual moderno seja a degeneração de um símbolo ancestral: a tentativa desesperada de incorporar o outro — pelo medo de perdê-lo, pelo desejo de eternizá-lo, ou pela recusa em deixá-lo ir.
Por Que Alguém Aceitaria Ser Devorado?
O que leva uma vítima a consentir?
Culpa. Traumas. Rejeição do corpo. Desejo de punição espiritual.
Algumas vítimas acreditam que seus órgãos sexuais são fontes de pecado ou de dor. Entregá-los é, para elas, um alívio. Uma forma de purificação. De renascimento.
Outras desejam desaparecer. Não por suicídio, mas por sacrifício. Querem que o outro carregue seu peso. Que devore sua dor.
E Por Que Alguém Desejaria Devorar?
Para o agressor, devorar é controlar. É possuir. É incorporar a essência do outro, torná-lo parte de si — literalmente. Alguns alegam motivação espiritual. Outros, fetichista. Em todos os casos, há um desejo de domínio absoluto. E, ao fundo, quase sempre, um vazio existencial que nenhuma outra forma de contato parece preencher.
Casos Reais que Desafiam a Razão
Armin Meiwes: o “Canibal de Rotenburg” (Alemanha, 2001)
Armin matou e consumiu partes do corpo de Bernd Brandes, que voluntariamente se entregou ao ritual. Pasmem: os dois tentaram comer o órgão sexual juntos. A história foi amplamente explorada no filme “Grimm Love” (2006), proibido temporariamente na Alemanha por questões éticas e jurídicas.
Jeffrey Dahmer: O Canibal Americano (EUA, 1978-1991)
Dahmer matou e canibalizou 17 jovens. Acreditava que, ao consumi-los, manteria suas vítimas consigo. Sua história inspirou a série da Netflix “Dahmer – Um Canibal Americano” (2022).
Heaven’s Gate (EUA, 1997)
Embora não tenha havido canibalismo, o suicídio coletivo de 39 pessoas de uma seita americana mostra até que ponto crenças espirituais extremas podem levar pessoas à autodestruição. O tema foi explorado no documentário “Heaven’s Gate: The Cult of Cults” (2020).
Issei Sagawa (França/Japão, 1981)
Matou e devorou uma colega em Paris por obsessão sexual. Declarado inimputável, foi extraditado e libertado no Japão, onde se tornou figura midiática. O caso rendeu um livro escrito pelo próprio Issei : “In the Fog: A story of love and cannibalism” (2024).
Canibais de Garanhuns (Brasil, 2012)
Jorge Beltrão e suas parceiras mataram mulheres como parte de um ritual espiritual, consumindo suas carnes e até vendendo alimentos feitos com elas. O caso foi retratado no livro-reportagem “Os Canibais de Garanhuns” (2018) e em vários documentários.
O Que Diz o Direito Penal Brasileiro e Estrangeiro?
No Brasil, não há tipo penal específico para canibalismo. Mas ele é punido com base em:
- Homicídio qualificado (art. 121, §2º, CP)
- Lesão corporal gravíssima (art. 129, §§ 2º e 3º)
- Vilipêndio de cadáver (art. 212, CP)
- Ocultação de cadáver (art. 211, CP)
- Crimes sexuais, especialmente com vítimas vulneráveis
Em muitos casos, o ato é carregado de conotação sexual. Quando envolve violência, vulnerabilidade ou fraude, pode configurar: Estupro de vulnerável (art. 217-A, CP), Violação sexual mediante fraude (art. 215, CP) ou Corrupção de menores (art. 218-B, CP). Além disso, os tribunais consideram a vulnerabilidade da vítima — mesmo que ela tenha consentido.
Mas mesmo que a vítima consinta, a vida e a integridade física são bens indisponíveis. O consentimento não exclui a ilicitude. Ou seja, quem devora, mutila ou mata outro ser humano com o consentimento deste ainda comete crime.
Em países como Alemanha, Japão, EUA, Reino Unido e Canadá, casos semelhantes também são julgados com base em tipos gerais de homicídio e mutilação. Não há, até hoje, tipificação específica para canibalismo sexual.
Responsabilidade penal e imputabilidade
Em crimes com essa complexidade simbólica e psicológica, a imputabilidade penal do agente pode ser contestada.
- O art. 26 do CP admite exclusão de culpabilidade se o agente for, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, incapaz de entender o caráter ilícito do fato.
No Brasil, isso exigiria:
- Incidente de insanidade mental
- Laudo psiquiátrico
- Análise da periculosidade para medida de segurança (internação)
Outras Perspectivas: Corpo, Desejo e Abismo
O canibalismo sexual, mais do que um crime, é um espelho. Um espelho escuro, que devolve a imagem do que tentamos esconder: nossos impulsos primitivos, nossos desejos inconfessáveis, nossa angústia diante do vazio.
Na Psicanálise, Freud chamaria isso de pulsão de morte — o impulso inconsciente de se dissolver, de destruir o próprio corpo como forma de reencontrar o silêncio original. Já Jung veria a sombra assumindo o controle da consciência: o inconsciente reprimido que, ao não ser integrado, emerge de forma monstruosa.
Para Georges Bataille, o canibalismo seria uma forma extrema de erotismo sagrado — um ritual de transgressão em que o corpo do outro se torna meio de fusão, sacrifício e transcendência.
Foucault, com seu bisturi filosófico, veria o corpo como território político, onde o crime não é uma aberração, mas sintoma: quando a sociedade tenta reprimir o desejo, ele retorna de forma grotesca e espetacular.
Na Neurociência, estudos apontam falhas no córtex pré-frontal e na amígdala de indivíduos com traços psicopáticos — estruturas responsáveis pelo controle moral, empatia e regulação dos impulsos. Para esses cérebros, o outro não é uma pessoa: é carne, é função, é descarga.
Em termos espirituais, o ato de devorar ou ser devorado pode ser visto como uma perversão arquetípica do desejo de fusão com o divino. O que em tradições místicas era metáfora (comer o corpo de um deus para unir-se a ele), aqui se torna ato literal, sem alma, sem símbolo — apenas carne.
Esses casos não são apenas crimes. São sintomas de um tempo esgotado de sentido. Sintomas de uma era que perdeu o sagrado, banalizou o corpo e distorceu o desejo até transformá-lo em abismo.
E, talvez, ao olhar para esses abismos, com seriedade e coragem, possamos compreender um pouco mais da engrenagem em que também estamos presos.
Conclusão: Somos Apenas Engrenagens?
Volto à frase do sonho:
“Sou apenas uma engrenagem da máquina. Nós dois somos.”
E me pergunto: o que essa máquina quer? Justiça? Vingança? Compreensão?
Canibalismo sexual é um tema-limite. Ele nos obriga a encarar tudo o que fingimos não ver: culpa, desejo, destruição, fé, violência. Não se trata apenas de punir — mas de compreender o que está em jogo quando alguém deseja ser devorado.
Em “Se Charles Bukowski fosse advogado criminalista” usei o humor para revelar as farsas do sistema, e em “Escolhi minha profissão ou ela me escolheu?” deixei a psicanálise cutucar minhas escolhas, este artigo mergulha num pesadelo real demais para ser só sonho. No fundo, todos falam da mesma coisa: os desejos ocultos, os abismos da alma e o preço de lidar com o humano — seja rindo, fugindo ou encarando.
Talvez o sonho tenha sido só isso: um sonho.
Ou talvez tenha sido o primeiro ato de uma história que ainda precisa ser contada.
Em livro.
Em filme.
Ou aqui — na realidade.
Conheça também nosso livro:
Na época em que tive esse sonho, eu estava mergulhado na escrita do meu livro “Introdução aos Fundamentos dos Crimes Sexuais: Teoria e Prática” e atuando diretamente em casos reais de violência sexual. Meu cotidiano era atravessado por relatos dolorosos, perícias psicológicas, contradições humanas e dilemas jurídicos profundos. Talvez por isso o sonho tenha vindo com tanta força. Talvez minha mente tenha reunido o simbólico, o jurídico e o humano numa só cena onírica — para me dizer que, por trás da frieza da lei, existe um abismo que precisa ser compreendido. Um abismo que tento enfrentar com coragem, tanto nos tribunais quanto nas páginas dos meus livros.
E se você estiver enfrentando uma situação semelhante ou deseja saber mais sobre o tema, consulte um advogado especializado para entender melhor seus direitos e obrigações.
O Escritório Prudente Advocacia está pronto para te ajudar. Entre em contato conosco pelo telefone (WhatsApp): (44) – 99712-5932 ou pelo E-mail: contato@prudentecriminal.adv.br.

Neemias Moretti Prudente, Advogado Criminalista. Mestre e Especialista em Ciências Criminais. Bacharel em Direito e Licenciado em Filosofia. Escritor, Criminólogo, Terapeuta e Professor. Bibliófilo e Cinéfilo.